13/06/2016
Era uma vez Joan, uma mulher norte-americana que quando foi amamentar Chiara, sua bebê, a encontrou morta no berço. Imersa no desespero ela “caiu numa espiral de depressão” e começou a questionar tudo em sua vida, se sentindo “flagelada pelos demônios da culpa”. A medida que “tateava em busca de alguma esperança na escuridão” ela sentiu uma enorme necessidade de conhecer a história de mulheres budistas, com a intenção de descobrir como elas tinham feito quando se encontraram em situações como a que ela estava vivendo. E assim viajou para o Nepal para estudar. Lá encontrou a biografia de Machig Labdron que viveu no Tibet no século XI.
Machig, certa vez, estava recebendo uma iniciação quando levitou e passou pelas paredes de argila do templo e voou até uma árvore acima de uma pequena lagoa que era habitada por Naga, espírito das águas muito temido por causar destruição e doenças. Raivoso por se sentir afrontado pela presença dela, Naga se aproximou, mas ela continuou meditando sem nenhum medo. Isso o deixou mais enfurecido e por isso reuniu um exército de Nagas para assustá-la. Quando ela percebeu a presença deles se transformou numa oferenda de alimentos e “eles não puderam devorá-la, pois ela não tinha ego”. E a agressividade deles evaporou e eles se tornaram seus protetores.
Essa história é a base da prática tibetana de Tchod para lidar com demônios interiores que Joan adaptou para que pudesse ser usada pelas pessoas do mundo ocidental.
Dentro de nós há demônios que podem ser coisas corriqueiras, como medo de pegar avião, mal estar ao nos olharmos no espelho, a raiva que estamos sentindo, uma irritação persistente, até depressão, doenças, obsessão... qualquer coisa que segundo Maching obstrui a conquista da liberdade.
A prática nos convida a escolher um demônio e localizá-lo no corpo e depois a personificá-lo e fazer três perguntas para ele: “o que você quer de mim? O que você necessita de mim? “O que você sentiria caso recebesse o que necessita?”. Essa terceira pergunta é muito importante porque o demônio pode dizer que quer provocar sofrimento, e que necessita um hotel cinco estrelas, mas é o que ele diz que vai sentir ao receber o que quer é o que realmente precisa.
Depois de feitas as três perguntas é preciso trocar de lugar com o demônio e responder por ele. Em seguida se retorna ao lugar original e transforma seu corpo num néctar daquilo que o demônio precisa e o alimenta com generosidade. Usualmente o demônio muda de aparência nesse momento. Depois a ideia é repousar na meditação, se dissolver no vazio.
Há demônios da doença, do medo, do amor, das dependências, do abuso, da culpa, da mente, da exaltação e do egocentrismo... Há também os que circulam nas famílias.
Aprendi tudo isso no livro “Alimente seus deuses e demônios” e essa teoria diz que lutar contra ou ignorar nossos demônios é o que os tornam fortes. Projetá-los nos outros é hábito corriqueiro e é o que nos leva a fazer inimigos pessoais.
Depois da morte de sua filha e de ter aprendido sobre a prática de Tchod, Joan estava na sala de sua casa muito amargurada porque seu ex-marido não queria permitir que ela partisse da Itália, onde viviam com seu outro filho. Ela teve a ideia então de praticar e se transformou num néctar para alimentar seu demônio do medo. A imagem do ex-marido apareceu em sua mente e ela o alimentou. Dessa maneira ela sentiu que tinha se desprendido da raiva que vinha sentindo por ele, como se, nas suas palavras, “tivesse temporariamente soltado minha ponta do nosso cabo de guerra”.
No dia seguinte, ele telefonou para ela marcando um encontro e contou que na noite anterior – quando ela tinha feito a prática – algo tinha mudado dentro dele e que ele entendia que ela tinha passado por muito sofrimento e que portanto ia liberá-la para voltar para seu país com os filhos.
Atônita com a mudança dele, ela lembrou que tinha feito a prática e entendeu que ao soltar a ponta do cabo de guerra a tensão não estava mais lá também para seu ex-marido, dando assim mais espaço para ele enxergar de maneira mais ampla e mudar de atitude.
Joan, nascida em 1947, foi a primeira norte americana a se tornar Lama dentro da Tradição Budista tibetana em 1970, aos 22 anos na Índia. Tsultrim Allione é seu nome desde então. Ela criou e dirige o Centro Tara Mandala no Colorado.
O livro Alimente seus Deuses e Demônios foi editado em português pela Editora Vida e Consciência. Eu o comprei no Templo Budista Tibetano Odsal Ling em Cotia (http://www.odsalling.org/) mas está a venda também nas livrarias, em alguns casos sob encomenda. As aspas nesta crônica sinalizam as palavras da autora.
A prática que ela chama dos Cinco Passos do Processo de Alimentar seus Deuses e Demônios tem mais elementos que não coloquei aqui, por isso a leitura do livro é muito indicada.