19/11/2015
Sabe o ator Antônio Fagundes? Ele é apaixonado por livros. Sei disso porque quando eu era um pouco mais do que uma garota fui ao teatro entrevistá-lo. Ele estava na bilheteria vendendo ingressos. O ano era 1986. E ontem, mexendo em papéis guardados, encontrei a matéria que escrevi, a partir da conversa que tivemos, para a coluna "Os livros que fizeram a sua cabeça" da Revista Leia Livros e pensei em publicá-la aqui. Ao mesmo tempo, fiquei me perguntando por que trazer novamente algo de tão longe no tempo. A resposta que encontrei foi bem clara : porque a paixão de Fagundes é contagiante, por causa dela li dois livros que ele citou, e também porque ele menciona autores e livros que já não estão mais tão na ordem do dia, mas continuam importantes. Por isso aqui vai:
Falar de livros com um ator é quase como conversar com um personagem: “Há pouco fui um espadachim do século XVII; ontem eu fui um caipira do interior do Brasil e anteontem um anarquista italiano. Vida de ator é isso: pinçar conhecimentos aqui e ali”, diz Antônio Fagundes.
Tanta diversidade encontrou um par na vida real: Jack London (1876 – 1916). “É um respeito e uma inveja que sinto por ele”, reconhece Fagundes. “London viveu cada um dos seus livros. Foi boxeador, escreveu sobre boxe. Sua mãe era espírita, escreveu um dos melhores livros que li sobre espiritismo. Escreveu aventuras que realmente viveu nos mares do sul, no Alaska, em minas de ouro. Foi alcoólatra, escreveu sobre alcoolismo. Foi um socialista fantástico, isso antes de 1917. Escreveu um livro de antecipação: Tacão de Ferro, sobre um movimento de resistência nos EUA, contra um governo de extrema direita. Se suicidou aos 40 anos, deixando mais de 40 livros escritos. “Já dá para começar a notar que o “personagem” Fagundes lê muito.
Agora volte no tempo e imagine-o aos dez anos, lendo toda a obra de Monteiro Lobato e livros de detetives americanos vendidos em bancas de jornas, especialmente a Série 41 delegacia de polícia. “Eles foram reeditados recentemente e resolvi conferir o porquê do fascínio. Bom, o herói dorme com uma mulher e mata um homem por página. Imagino que isso realmente interesse a um garoto”.
Aos 14, Fagundes já tinha como certo que gostava de ler e era preciso abandonar as bancas e entrar numa livraria. Foi o que fez: “Quero ler os clássicos. Quem são? Dostoiévski, Kafka, Tolstoi.” Nessa época, André Gide, com Frutos da Terra, foi quem fez sua cabeça. “É um comentário sobre a vida, a arte e o homossexualismo”. Apesar do alto nível de suas leituras, Fagundes nega que fosse diferente dos outros meninos da sua idade: “Ler não me impediu de ser igual a eles, de tomar porres nos bailes. Só que quando eu voltava para casa eu lia. Não gosto da imagem da pessoa-que lê. Ler era, antes de tudo, para me ajudar na relação com os amigos”. Não é a toa, assim, que seja essa a frase que Fagundes guardou dos Frutos da Terra: “ que esse livro te ensine a te interessares mais por ti, do que por ele próprio, depois por tudo mais, mais do que por ti”.
Já o Homem dos Dados de Luke Rhinehart me fez pensar sobre a personalidade”. O livro relata a história de um psicanalista ortodoxo que cria a Escola dos Dados. Para qualquer atitude que tomava na vida, ele jogava dados. “Esse livro me fez pensar sobre as muitas possibilidades que temos diante de nós e o porquê da escolha de uma e não outra. Lembro de uma frase que inventei: A personalidade é uma ditadura do ego. Você pode ser sempre aquela pessoa, assim assada, frita, cozida, que te impõe certas diretrizes que, às vezes, você está se violentando para seguir”.
O ator confessa que lê “até bula de remédio. E lendo sou capaz de gritar de medo, de chorar. É até ridículo porque basta parar de ler aquela frase, mas eu sou incapaz. Vou até o fim, até morrer. Eu me envolvo mesmo. E, como ator, eu vou contar aquilo para alguém, daquela forma, e a pessoa vai chorar também”.
Delícias de quem tem um ator-leitor como amigo. A conversa só podia acabar mesmo em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury: “Num futuro qualquer a escrita foi abolida. Das mangueiras de bombeiros sai o fogo que queima os livros que ainda restam. Um dos bombeiros, intrigado com aquela perseguição, rouba um livro por vez, até ser denunciado e fugir. Ele encontra então um movimento de resistência. Lá é apresentado aos novos companheiros: Este é Guerra e Paz, volume um. Aquele, na janela, é o volume dois. As pessoas decoravam os livros para impedir que a literatura morresse”.
Uma última pergunta: Por que esse livro, Fahrenheit 451, fez a sua cabeça? “Eu adoro ler e é isso mesmo, a literatura não pode nunca acabar”.
Imagem: capa do livro Fahrenhheit 451, que depois foi transformado em filme por François Truffaut em 1966.