06/01/2014
É muito importante quando os olhos desobedientes se enchem de água. Significa que acessamos um veio de água subterrânea. Pode ser que ali tenha algo precioso para ser compreendido. Algo que não foi arejado, um lugar por onde a energia não circula.
Gosto de perguntar para mim ou aos outros qual foi o pensamento que trouxe a lágrima ou qualquer sentimento exagerado. Esse pensamento é a fala que precisa ser dita e ela não fala do presente, fala do passado. O que nos irrita demais ou nos entristece demais é o passado vivendo no presente.
Por isso que é difícil nos entendermos e entendermos os outros. Ficamos confusos porque reagimos ao presente com uma dor do passado. Costuma ser desproporcional! Uma dor que não teve oportunidade de se expressar livremente na época que foi sentida e “que foi levada para camadas profundas e dali se manifesta”. Por isso que nenhuma palavra sensata surte efeito quando estamos nesses estados. Nenhuma fala consegue atingir quem não está ali de verdade.
Outro dia um amigo começou uma discussão numa festa. Quem olhou com atenção pôde perceber que quem estava ali era um menininho magoado e assustado, que reclamava de coisas difíceis de serem entendidas, e não o adulto com quem estavam tentando argumentar sem sucesso.
Aquele soco no vidro que acaba cortando a mão, o chute que machuca o pé, o palavrão que pula da boca, a palavra que atinge o outro no lugar mais frágil... enfim, perder a cabeça! Uma parte nossa autônoma, uma conta atrasada que, de repente, não dá para evitar cobrar!
Quase todo mundo tem alguém com quem implica, ou por quem se é apaixonado obsessivamente, alguém que se odeia, ou se inveja, ou se admira demais... Essa pessoa é aquela que puxa o fio da dor lá do passado. Ela é uma daquelas pedrinhas que colocamos no chão para achar o caminho de volta. Precisa de muita consciência para não olhar para essa pessoa e reclamar, recriminar, o que for. Não é para ela que tem que ir a atenção e sim para os sentimentos que ela causa. O que ela causa, ou melhor, o que ela desperta é nosso. É a pista, é a informação que precisamos para começarmos uma grande viagem interior e voltar ao passado e entender onde nossas porquinhas torcem o rabo! Para entender como construímos nossas maneiras de ser.
Admito que é quase impossível não responsabilizar o outro e encarar de frente a dor que ele desperta como nosso exclusivo assunto, mas o que dá para fazer é lembrar que esse é um processo quase que para uma vida inteira. O primeiro passo é perceber quando saímos da reação desproporcional, da neura como gosto de dizer. Aos poucos vamos percebendo também quando entramos. Chega um momento que dá para sentir quando a neura chega gelando todos os ossos ou queimando o estômago, dá para sentir a dor pegando forte e se aguentamos, se ficamos com ela, se paramos de recriminar, ouvimos o que ela tem a dizer e assim ficamos um pouquinho mais livres da inconsciência, que é o seu combustível.
Indo por esse caminho, por exemplo, entrei em contato com problemas de confiança relacionados a infidelidades de todo tipo. Comecei encarando minhas reações em relação a esses assuntos na minha própria vidinha, desde meus primeiros namoros, e acabei percebendo que muitas vezes estava revivendo situações emocionais que atormentaram também meu avô materno, minha avó paterna e minha mãe. Questões que meus antepassados não tiveram condições de resolver e que assombraram suas vidas.
Camadas cada vez mais profundas foram se apresentando quando me abri para tentar entender meus desatinos nessas áreas. Os sonhos colaboraram, os insights foram chegando... Doeu, dói, e muito! Acho que nunca vou me curar de verdade, mas ao menos já sei onde fica o fogo e como faço para não me queimar. Conhecer bem minha fragilidade me dá força e liberdade e, ao menos teoricamente, meus descendentes não vão herdar minha inconsciência, não terão que se haver com essas questões onde estou colocando luz.
Pelo que sei o Budismo não acredita que é preciso ir lá atrás conhecer de onde vem as emoções aflitivas, basta trabalhar com elas no presente. Já a Constelação Familiar cria um campo onde os fatos que aconteceram no passado, e aprisionam as pessoas aos seus padrões, emergem trazendo liberação. Comigo foi pá e picareta, muita escavação lá nas profundezas, seguindo os veios das águas que brotavam nos olhos.
Seja lá qual for o caminho, o que importa, acredito, é libertar o outro, aquela pessoa que carrega nossas projeções, que desperta nossos sentimentos doloridos, desse lugar que a colocamos. Para que ela fique livre, para que nós fiquemos leves. Sim, tem muita gente que realmente pisa nos nossos pés, e aí é preciso que reclamemos e principalmente que tiremos nossos pés debaixo, mas não é com a inconsciência que fazemos isso. Não precisa ser com o chute que machuca nosso pé, com a palavra que fere, nem com cachoeira de lágrimas porque essas maneiras estão apenas dizendo que estamos muito mais dialogando conosco do que resolvendo uma questão do presente.
Desconfiar das certezas, desistir delas, assistir os temporais da nossa varanda interna, para perceber que quando acaba a chuva vem um silêncio incrível que revela os sons que estavam abafados pelo barulho da água caindo forte, como agora, aqui no litoral onde estou.
Abrir a porta das mágoas e me deixar sair, e também as pessoas que acreditei que me magoaram ao longo da vida, para podermos sentir o frescor da terra lavada.
Vastidão no meu planeta, muitos lugares para ir dentro e fora de mim, se é que há diferença entre essas duas instâncias. Muitas viagens no exato agora, para isso a mais leve das bagagens!
Foto: Ligia Vargas