Cotidiano & Psicologia Voltar
Quem sou – de uma questão existencial à busca frenética por diagnósticos
29/09/2023
Tendo como foco algo que nos é tão íntimo – a nossa subjetividade –, a psicologia talvez esteja falhando em tornar acessível o conhecimento que tem desvendado em mais de um século de existência na modernidade e que poderia auxiliar nas grandes inquietações humanas, advindas da consciência que temos de nós mesmos.
Em contraposição, vemos um movimento relacionado à psiquiatria, cujos incontáveis resultados obtidos pelos estudos da área têm se tornado cada vez mais populares, o que vem gerando um outro tipo de problema, que é uma demasiada simplificação de certas questões humanas profundas e também o excesso de diagnósticos e medicação.
Embora hoje alguns termos da psicologia já circulem bastante e muitos façam parte até da nossa linguagem cotidiana, como complexos, recalque e o inconsciente, às vezes me surpreendo como eu mesma falo pouco aos meus pacientes sobre o que é uma neurose e raramente dou nome claro ou destrincho a dinâmica de um complexo emocional ou de um trauma.
Talvez a falta de acesso a esse tipo conhecimento, que acaba ficando restrito a conversas entre profissionais, cursos ou pesquisas, esteja contribuindo para um vazio em relação a perguntas como “quem sou”, “como posso me realizar” e, na base de tudo, “como posso me livrar do sofrimento que estou experimentando”.
O fato é que qualquer ser vivo se move por dois impulsos básicos: ser feliz e não sofrer. A todo momento, tudo o que fazemos tem a ver com esses dois anseios. Se estou escrevendo este texto e se você o abriu para ler, certamente, na base, nossa busca é a mesma: encontrar caminhos para o nosso bem-estar e evitar o sofrimento.
Se isso for assim de fato, não conseguiremos viver bem se não pudermos encontrar boas saídas para os nossos problemas objetivos e também para os desafios subjetivos que enfrentamos. Por conta disso, sempre desejei que assuntos como psicologia, mecânica, direito, arte etc. estivessem entre as matérias fundamentais da vida escolar, assim como gostaria de ter aprendido nas tantas horas passadas no colégio a cultivar uma horta, fazer pão, respirar, dançar e viver bem com as outras pessoas, encontrando meu lugar no mundo e podendo oferecer o mesmo aos outros.
Infelizmente, ao invés de sermos apresentados desde pequenos a essa necessidade natural e cotidiana de lidarmos com aquilo que ainda não está bom e que nos desafia, somos tomados por uma fantasia – cada vez mais intensa, uma verdadeira obrigatoriedade – de sermos permanentemente felizes, produtivos, nos relacionar, amando e sendo amados, num modo extrovertido que nos levaria a ter desempenho excelente em várias ou em todas as áreas da vida.
Esse é o principal adoecimento da sociedade e dos tempos atuais: imaginar que boas condições podem ser alcançadas sempre de modo instantâneo e que devem ser mantidas de forma permanente e completa. Então, quando isso não acontece, a pergunta mais rápida é "o que está havendo de errado comigo?".
Essa questão pode gerar muita angústia, que, por sua vez, leva a ansiedade e pressa. Infelizmente, explicações e soluções também precipitadas costumam ser parciais e simplistas e, portanto, caminhos infelizes, especialmente neste âmbito. É assim que cada vez mais acabamos resumidos a nomes como depressão, ansiedade generalizada, pânico e mais recentemente uma epidemia de casos de autismo e tdah.
Hiperdiagnosticados, sem perceber, ficamos diante de uma subjugação ofuscante, que, num primeiro momento, até promete nos apaziguar, aparentemente apontando para caminhos relativamente fáceis de serem seguidos. Com o passar do tempo, no entanto, a falta de solução real para nossos anseios básicos acaba trazendo novas frustrações e mais desamparo.
Conhecermo-nos, entendermos a vida e o que ela nos apresenta sempre significará, para o bem ou para o mal, um processo bastante gradual de descobertas e fortalecimento da nossa singularidade. Para além de generalidades e rótulos, existem nossas ricas dinâmicas internas, incluindo aí sentimentos, reações, compreensões, significados dados, desejos, aspirações etc., únicos para cada um de nós.
Um caminho realmente terapêutico, medicinal, para as nossas dores não pode ofuscar tudo o que se passa nesse nosso mundo interno, subjetivo. Muitas vezes os diagnósticos serão aliados. A medicação idem. Quando o sofrimento está intenso demais, insuportável e sufocante a ponto de não nos permitir caminhar, esses conhecimentos serão de enorme valor.
Os inúmeros recursos das várias áreas que cuidam da saúde mental, bem como seus profissionais, podem e devem ser sempre esses facilitadores para as trajetórias pessoais. No entanto, nada disso jamais deveria tomar o lugar, roubar a autonomia e tirar a importância da expressão particular que cada uma(um) de nós pode dar àquilo que de fato somos. O trabalho e as descobertas feitas no nosso mundo interno subjetivo nunca serão tarefas simples, mas a riqueza dessas experiências é a própria saúde mental. Talvez precisemos falar mais sobre isso.
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