22/04/2010
Risomar Fasanaro
Pois é...não sei se todas as pessoas se dão conta, mas existe um diálogo de silêncio. E é um diálogo que muitas vezes nos doem como se mastigássemos, e engolíssemos pedras.
Mas, dirão os linguistas, logos não significa palavra, e diá através de? Pois é, a vida com toda sua riqueza nos leva a desmentir normas estabelecidas há centenas de anos. Reafirmo que existe um diálogo no silêncio. E ele é profundo, intenso e muitas vezes ocupa mais espaço em nosso ser do que milhares de palavras.
Duas pessoas vivem em uma mesma casa, mas não há palavras. À mesa do café o que se ouve é o som da colherinha na xícara, o ruído do café descendo pelo bico do bule, um ou outro roçar de cadeiras que se afastam... mais nada. Não há nada a ser dito.
Há o silêncio entre duas pessoas que se amam, e que, juntas ficam abraçadas horas e horas em silêncio, sem se dar conta. Pra que palavras? A “comunhão” entre elas é tão grande que não precisam dizer nada.
Mas há outro tipo de silêncio. É o silêncio onde existe um mundo a ser dito, mas não se sabe por que razão, as palavras não brotam. É como uma nascente dentro de uma floresta; algo tampou a saída, e não há como a água sair. A fonte fechou-se e por mais que se tente, a água não sai.
É aquele silêncio em que os pensamentos são só luz, espírito, não têm corpo. E em uma das duas pessoas a vontade de que ele tome forma, se materialize é tamanha, que chega a sufocar. A sede de ouvir o outro é tão grande que dói, mas o que vem é só o vazio. O eco de todo um mundo que não nos chega.
Ontem pela manhã pensei muito no meu pai e em um amigo dele, José Dantas da Silva, um cearense simpaticíssimo, que ia diariamente à nossa casa. Os dois ficavam na sala conversando, falando do nordeste, sempre muito alegres.
Mas minha mãe sofreu um AVC, e a partir dali a conversa entre meu pai e seu amigo passou a ser intercalada por silêncios. E quando depois de quatro anos ela faleceu, o silêncio aumentou. Tanto que o que era conversa passou a ser um silêncio intercalado por uma ou outra palavra. Já não havia frases.
Seu José falava, meu pai ouvia, dirigia ao amigo um olhar triste mas não dizia nada. Nenhuma palavra.
“Ouvindo” aquele silêncio, eu ficava sem jeito, deixava o que estava fazendo e entrava na conversa. Naquele tempo ainda não tinha me dado conta de quanto o silêncio pode em algumas ocasiões, nos dizer mais do que as palavras. E também do quanto também pode doer mais que elas.
Ali eu sabia que naquele mutismo havia um mundo povoando a cabeça do meu pai. Um mundo feito de dor, de saudade, de sentimento do irremediável. Daquela dor que tão bem Edgar Alan Poe escreveu em “O Corvo”. A dor do nunca mais.
Um sofrimento tão grande que ninguém conseguia ver, porque para o ser humano é mais fácil decifrar códigos tangíveis, e os sentimentos são impalpáveis. Mas o amigo, um artista, conseguia captar, e sabia que a única coisa que podia fazer por ele era ficar ali sentado, ao lado dele, os dois conversando seus silêncios.
Alguns meses depois nos mudamos e seu José já não pôde acompanhar os últimos anos do meu pai. Ao lado dele ficávamos eu e o Sr. Alzheimer, seu novo “amigo”. Poderoso e possessivo dominava totalmente meu pai.
Eu sabia que seu José tocava saxofone, e para não incomodar a mulher, dona Vandira, nem os vizinhos, nos finais de semana ficava na edícula da casa, fechada, tocando ou ouvindo discos instrumentais. Um artista.
Esse homem hoje está doente, sofreu um AVC e quase não sai de casa. Faz algum tempo estive lá, e então fui eu que mantive com ele, aquele diálogo que ele conhece tão bem. .
Nunca lhe disse o quanto sou grata a ele, mas gravei para sempre o que fez por meu pai, por mim, e relembro hoje um gesto seu que muito me emocionou. Um dia me disse: “vamos lá em casa que eu tenho uma surpresa pra você.” Eu fui e ele falou: “senta aí e espera.” Fiquei sentada, em silêncio. Dali a dois minutos mais ou menos, a sala foi invadida pelo canto de um pássaro. E eu fiquei sem saber o que dizer, decepcionada.
Como aquele homem que eu admirava tanto, um artista, podia ter um pássaro preso em uma gaiola? Segurei a decepção e tentando ser o mais natural possível, perguntei: “ que passarinho é esse, seu José? onde ele está?” E aí, todo feliz, ele me apontou um relógio de parede.
Era um relógio grande, redondo, em que cada hora é marcada com o canto do pássaro cuja fotografia marca àquela hora. Algo inteiramente novo para mim. E ele me contou: “eu trabalho com o filho do Dalgas Frisch, e eles me deram de presente este relógio.
Logo, logo vai ser vendido nas lojas... Se você quiser, eu compro um pra você pelo preço de custo. E tem mais. Ganhei deles e quero lhe dar de presente.” E me entregou um pôster com uma foto enorme de um beija-flor.
Naquele instante, emocionadíssima, eu compreendi o quanto aquele homem era especial. Eu nunca tinha dito a ele o quanto gostava de beija-flores. Ele deduzira isso ao ver o bebedouro pendurado na janela. Realmente ele sabia o que era a voz do silêncio. Por isso fora capaz durante vários anos de “conversar” com meu pai.
Pernambucana, veio para Osasco com 11 anos. Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil. |