29/07/2010
Por Risomar Fasanaro
Era um homem ainda jovem, com uns quarenta anos, talvez. Segurava uma tábua e falava, falava, falava, falava e gesticulava... sozinho. Ou, quem sabe, falava consigo mesmo, talvez nosso melhor interlocutor. Alguém com quem contamos sempre como um ouvinte atento, solidário. Alguém que nem sempre nos compreende, mas nos ouve.
Era um final de tarde, véspera de feriado e eu passava por uma rua movimentada quando o vi.
O sinal fechou e pude observá-lo melhor. Estava sujo, barba grande, e só agora chegando mais perto, pude entender seus gestos. Ele colocava a madeira no chão e a serrava, batia pregos e parafusava...
Tudo isso dentro do seu mundo, um mundo que era só seu. Depois de parafusar, ele enfileirava tudo, e recomeçava: serrava, batia os pregos, parafusava.
Sim, ali estava o Carlitos de “Tempos Modernos” com seus movimentos automatizados.
Mas a lembrança mais forte, talvez por ser mais próxima foi a de meu pai na UTI do hospital, em uma de suas primeiras internações.
Com gestos precisos ele pegava a chaleira, abria a torneira, enchia d’água e a colocava no fogão. Depois punha café no coador e despejava a água fervente sobre o pó. Gestos precisos.
Minha irmã quando viu aquilo se assustou e começou a chorar, mas eu fiquei prestando atenção e traduzi tudo que ele estava fazendo.
Agora, ali naquela avenida, eu revivia aquela lembrança. E a recordação me emocionou, mas já não me doeu tanto. Veio leve, com aquela doçura tão própria do meu pai, que fazia o melhor café que já tomei.
O sinal abriu e fui imaginando em que mundo aquele homem no meio do trânsito vivia. O que lhe haviam tirado? Teria sido um marceneiro que perdera o emprego e não conseguira reconstruir a própria vida, porque nunca mais arranjara outro trabalho, ou porque sofrera um surto psicótico?
Seria ele que vivia em um mundo imaginário, mais feliz do que eu que convivo com o eco dos acontecimentos embutidos nas manchetes dos jornais?
Conversando com minha amiga Dina sobre aquele homem, ela me contou sobre seu pai. Quando doente, também ele em seus últimos dias no hospital, criara um mundo imaginário onde mantinha seus afazeres de alfaiate.
Colocava o tecido sobre a mesa, dobrava, riscava e ia cortando. Percebia-se pela dificuldade com que manejava a tesoura, que esta era grande, pesada. Tal qual a real que fora utilizada por ele tantos anos...
Este mundo imaginário sempre me fascinou. Certa vez em uma estação rodoviária no interior de Minas fiquei horas ouvindo as histórias que uma senhora, portadora de doença mental, me contava. Eram tantas histórias e tão criativas, que eu não conseguia arredar o pé dali.
Meu marido na época, pacientemente ficou me esperando por mais de duas horas e já não aguentava mais quando me despedi dela, que “marcou um encontro” comigo, uma pessoa de quem ela gostara muito.
Local? Data? Ela não teve a mínima preocupação de me dizer. Tinha como eu, a certeza de que existe um mundo de fantasia, onde todos nos encontramos sem precisar de agenda, sem necessidade de relógios...e que um dia qualquer ela voltaria e continuaria a me contar suas histórias.
Pernambucana, veio para Osasco com 11 anos. Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil. |