01/06/2022
Pela primeira vez Alma se reconciliou com o nome que recebera de seus pais. Ela estava no velório de seu melhor amigo quando se deu conta de que aquele corpo tão querido havia perdido a vida. Estava morto, vazio, era um nada agora, ninguém. Não podia mais abraçar, cantar, dançar, rir e chorar, não podia mais amar. Tudo aquilo de que ela tanto gostava naquele ser havia desaparecido para sempre.
Depois do enterro ela decidiu caminhar pelas ruas de seu bairro e respirar um pouco o ar livre no suave calor do sol de outono. Estava ainda sob a forte comoção daquele dia triste e difícil. Mas, misteriosamente, sentia que não estava sozinha, a presença da morte era muito real, como se a acompanhasse nesse passeio.
Então começou a observar as pessoas ao longo do caminho, todo tipo de gente: motoboys, babás com crianças, namorados, trabalhadores humildes, mulheres jovens e velhas, homens de negócio em seus carros blindados, policiais, famílias inteiras etc. Percebeu que ninguém se lembrava de que iria morrer, os olhares estavam focados exclusivamente no passado e no futuro, perdidos em sonhos e desejos, egos barulhentos comandando destinos sem direção ou sentido.
Caminhou vários quilômetros sem cruzar com uma única pessoa de olhar presente, penetrante, consciente de sua situação neste mundo, de que a vida em um corpo físico é passageira, que todas as posses e projetos, todos os entes queridos, todos os apegos irão desaparecer a qualquer momento, como se nunca tivessem existido.
Em alguns momentos ela se percebia consultando também a agenda de compromissos, fazendo planos, perdida em pensamentos, integrando-se naquele rio de esquecimento. Mas a presença da morte era muito forte, tão verdadeira que ela compreendeu que a vida e a morte são lados da mesma moeda, indissolúveis. É a realidade mais próxima de cada um de nós, pensou, mesmo quando estamos completamente inconscientes, acreditando apenas no que podemos ver e tocar como o corpo físico.
Para seu espanto esta experiência durou vários meses. Dormia e acordava tendo a morte como companheira inseparável. Neste período sua vida adquiriu um colorido vibrante de energia e saúde, uma inteligência lúcida e penetrante e uma visão ampla e profunda que eram iluminadas por uma compreensão acolhedora, compassiva, amorosa. Ela estava no mundo mas não pertencia ao mundo.
O medo da morte foi desaparecendo e Alma começou a amar a solidão e o silêncio tanto quanto amava se relacionar e compartilhar. Percebia claramente o fluxo do tempo na roda gigante da vida, subindo e descendo, enquanto permanecia na estabilidade de um centro imutável, seguro, imperturbável. Viver e morrer eram expressões de uma mesma grande aventura.
Agora, todas as noites, antes de adormecer profundamente e todas as manhãs antes de acordar completamente, ela murmura docemente: Eu Sou Alma, Eu Sou Eterna, Eu Sou Imortal.
Carmem Carvalho e Marian Bleier