17/11/2020
Mais uma história da série Contos do Despertar
Adormeci encostada ao tronco de uma árvore milenar e, em sonhos, ela me contou:
“Eu me lembro de tudo, desde que era uma semente debaixo da terra. Foi tão difícil brotar, mas uma força dentro de mim me empurrou para fora. Você não tem ideia do que é sair da escuridão do interior da terra para a luz e o calor do sol! Foi um momento de pura felicidade. Depois, ao longo do tempo, enquanto minhas raízes mergulhavam firmemente no chão, meu tronco se erguia cada vez mais em direção ao céu.
Preciso contar o que vi e ouvi e aprendi nesses anos todos aqui na Terra, antes que os incêndios me devorem ou os comerciantes me cortem em pedaços para vender a madeira.
Conheci um número incontável de animais, vegetais, humanos, seres visíveis e invisíveis deste mundo e dos outros. Assisti a nascimentos e mortes, amantes se amaram e se despediram sob a sombra de minha folhagem, juras de amor foram esquecidas, promessas quebradas, traições! Há muito ouro e esqueletos enterrados sob minhas raízes. Reis e generais, senhores e escravos, santos e assassinos passaram por aqui e todos desapareceram como se nunca tivessem existido.
Ainda ouço os risos das crianças que se tornaram soldados e morreram nas guerras. Os ideais revolucionários da juventude e a triste decadência da velhice. A verdade e a mentira, a coragem e a covardia, a crueldade e a bondade, gestos de ódio e vingança, de perdão e compaixão. Quantos sons ao meu redor! Os sinos das igrejas, os latidos dos cães, o relinchar dos cavalos, carroças, carruagens, carros, aviões, o brilho febril das motosserras, casas erguidas e destruídas por incêndios e furacões.
Tudo passa neste mundo, gerações e gerações, nações inteiras são devoradas pelo tempo. A vida passa como as estações do ano e, quando você se dá conta, já terminou. Não há volta sobre seus passos, não há segunda chance para ninguém, todo ato tem suas consequências, não existe passado nem futuro, tudo acontece aqui agora.
O teatro da História sempre se repete com novos roteiros, personagens, cenários e figurinos, porque a mente e o coração das pessoas continuam sempre os mesmos.
Percebo a tristeza e o cansaço da Terra que sofre com a destruição e continuo me comovendo com os cantos dos pássaros e a beleza sempre jovem das flores na primavera.
Você me pergunta se valeu a pena, se alguma coisa ficou de uma existência de mais de mil anos?
Aproveitei cada momento para testemunhar o desenrolar perene da vida e fazer parte dela me ensinou que a seiva que corre em minhas veias é sempre pura, doce e feliz.
Eu me vejo presa no mesmo lugar, imóvel e silenciosa, em constante contemplação.
Eu a vejo como uma árvore que conquistou um corpo perfeito para caminhar livremente pelo mundo, mas que perdeu a memória e vive à procura da felicidade que habita dentro dela.
A consciência é tudo o que existe, a vida é tudo o que permanece.”
Carmem Carvalho e Marian Bleier