25/09/2019
Durante a semana ela levantava cedo para tomar o café da manhã com a família, alimentar os cachorros e molhar as plantas. Depois levava as crianças para a escola e ia trabalhar em sua pequena fábrica de bolos, lidando com os funcionários e atendendo os clientes.
No horário do almoço, aproveitava o tempo para visitar os avós velhos e doentes, sempre carentes de atenção e carinho, e combinar o almoço de domingo com a mãe, cozinheira de mão cheia que adorava receber a filha e os netos em casa.
No final da tarde pegava as crianças na escola, fazia algumas compras rápidas no supermercado e corria para preparar o jantar, pois seu marido gostava de comer bem e ela sentia prazer em surpreendê-lo.
Naquela noite, ela sonhou que seu coração era uma grande pizza, repartida em muitos pedaços que alimentavam a família, os amigos, os empregados, os clientes, os cachorros, as plantas, e não sobrava nenhum pedaço para ela mesma se alimentar. Perto da pizza havia uma ampulheta por onde a areia do tempo escorria sem parar.
— Minha vida é boa, pensou, ao acordar. Eu tenho juventude, saúde, afeto, dinheiro, então que falta é esta que sempre me entristece e angustia? Que sensação ruim de estar jogando a vida fora, quando me sinto tão privilegiada e tudo parece estar no lugar certo?
Levantou da cama e foi até o jardim, onde contemplou o céu, desfrutou a luz e o calor do sol, o perfume das flores, o canto dos pássaros, e caminhou descalça pela grama ainda úmida de orvalho. Subitamente uma canção de infância veio-lhe à memória e ela cantou com alegria e vigor.
Quando entrou no escritório, o livro de filosofia oriental que uma amiga lhe presenteara, e que nunca lera, quase caiu sobre sua cabeça. Ela o abriu e começou a ler e naquele dia todos os compromissos foram cancelados, porque cada palavra fazia sentido de uma maneira tão forte e profunda que não foi possível interromper.
— Então havia um caminho interior que podia preencher o vazio de seu coração com Algo tão valioso que era impossível descrever com palavras?
Foi o início de uma vocação luminosa, uma vivência real que transformou sua vida e a de todos ao seu redor, um porto seguro que a acolheu no futuro, em momentos muito difíceis e sofridos de sua maturidade e velhice.
Carmem Carvalho e Marian Bleier