16/09/2014
A raiva muitas vezes se comporta como uma bola que tentamos segurar embaixo d"água. Exige uma atenção constante, se relaxarmos ou nos distrairmos, ela irrompe, salta da água para fora e recai (o famoso explode) em cima de crianças, animais, e muitas vezes no trânsito. Esse conceito e essa imagem aprendi ouvindo palestra da Lama Tsering, do Budismo Tibetano, num cd que ouço no carro.
Ela diz também que o desejo precede a raiva. Queremos que as coisas sejam assim e não assado e queremos que as coisas sejam assim para nós, nossos filhos, nossos amigos, nosso trabalho... a palavra predominante é meu/nosso.
Porque o meu é mais valioso que o seu. Também quero que seja bom para você, mas se tiver que ser bom só para um, que seja para mim, claro!
Assim “caminha a humanidade...”
Minha filha fez um curso sobre direçãatilde;o emocional (para ter desconto no seguro do carro) e os psicólogos que estavam dando aula propuseram uma dinâmica. Deram a todos um cartão com duas cores: vermelho numa face e branco na outra, e explicaram que cada um teria que escolher que cor iria exibir num determinado momento. As condições eram as seguintes: Se todo mundo escolhesse branco todos iriam dividir um pote de bala e os que escolhessem vermelho ficariam com todas as balas para si.
Aí os trinta participantes, seguindo a sugestão de um rapaz de cerca de vinte anos, escolheram branco e ele, o líder, escolheu vermelho. Só ele. Ou seja, o pote de bala ficou todo para ele, que ficou muito alegre com o que tinha feito, muito orgulhoso da sua esperteza. Todo mundo ficou olhando feio e ele não reparava na hostilidade. Os psicólogos estavam sem graça porque não esperavam aquela situação e perguntaram: “Você está feliz por ter ficado com todo o pote para si?”. Ele respondeu que sim. Aí disseram que ele não podia levar o pote, só as balas e que ele poderia dar algumas para os participantes. Ele foi dando uma para cada pessoa, ao mesmo tempo que enchia os bolsos com as balas.
Ele não tinha alcance da situação. Não percebeu a proposta que tinha sido feita pelos psicólogos, de se falar em colaboração fazendo uma ponte com o guiar, com o trânsito. Sua visão, sua consciência entendeu apenas parte da realidade. Imagino que, se dissessem para ele que, escolhendo o vermelho, iriam falar mal dele, que até teria uma enxerida escrevendo a respeito num site, que iriam citá-lo como exemplo de uma mentalidade que esgota o planeta, que causa dano aos outros etc, ele não iria tão impulsivamente querer todas as balas para si.
Cada um de nós vê parte da realidade. Nossos ouvidos não conseguem ouvir choros na apartamento vizinho, nossos olhos só enxergam o que está na sua frente... Como se amplia esse olhar?
Voltando ao ensinamento budista: Se o desejo precede a raiva, se ambos existem porque o Eu quer isso e não aquilo e não consegue, o x da questão é o Eu... Estava no Carrefour esperando a moça fazer uma nota fiscal. Ela levava muito tempo para ler o que estava no papel e digitar a nota que me liberaria para ir embora. Meu Eu começou a ficar impaciente e reparar na, para mim, absurda incapacidade dela, meu desejo de ir embora aumentando, a irritação chegando e me lembrei do que tinha acabado de ouvir no ensinamento e passei a me observar. Nisso ela me pediu meu Cep, comecei a falar, mas como ela tinha dificuldade para digitar, parei nos primeiros números, quando fui retomar não lembrava da continuação! Fiquei como ela, pouco capaz para a tarefa. Ela foi muito gentil com o meu “branco”! De repente estávamos as duas em comunhão com o formulário e suas dificuldades. Acabei lembrando o Cep, ela acabou terminando e tudo já foi, já foi de novo e está sendo, para logo deixar de ser... a tal da impermanência que o budismo tanto ressalta...
Enfim, que a consciência se amplie para entendermos o que significa a cooperação, o fazer junto, o pensar no outro como sendo tão importante quanto o Eu. Entender que não há fora. Não tem onde colocar o lixo que se quer jogar fora. Estamos todos aqui e impactamos um ao outro, no trânsito, em absolutamente tudo. Respiramos o mesmo ar, que passeia de um organismo ao outro nos tornando um único pulsar.
Foto Ligia Vargas