19/10/2011
Acordo dentro de mim e da minha vida todos os dias, sem apelação. Abro os olhos e rodo sempre o mesmo programa. É assim com todos. Mesmo quando alguém amanhece acreditando que é Napoleão, quem está em volta chama a ambulância porque não dá para deixar de ser quem se é, mesmo que se mude o nome, aparência, lugar, o que for.
Claro que vou me transformando e minha vida também, mas, ainda assim, o que sou vive neste exato corpo que preciso cuidar e tenho um café da manhã marcado comigo todos os dias.
Andei muito cansada desta inevitabilidade e de mim também. Achei que já estava bom meu tempo por aqui e fui falar disso com amigos, perguntando qual era a graça de viver.
Um deles respondeu que a graça é se relacionar. Disse que me conhecia bem e por isso sugeria que eu ousasse querer mais de quem interage comigo, que aprendesse a me queixar, a me relacionar de verdade, sair do lugar confortável de não esperar mais do que o outro pode dar.
Difícil, respondi, para isso preciso mudar minha programação que estabeleci lá no comecinho da vida quando vi que pessoas são vespeiros e tomei algumas boas picadas.
Outro amigo disse que a graça é encarar os desafios de cada idade. Ver a perspectiva nova que existe naquilo que parece velho. O observador mudando de ângulo. Interessante, pensei, mas o antídoto contra o meu olhar desgastado veio muito eficiente de outro lugar.
Anteontem acordei especialmente exaurida, sem gosto pela vida, como aquelas crianças ricas que desdenham o prato de comida. Mais tarde, na madrugada, fui buscar minha filha em mais uma balada. No carro minha boca começou a contrair.
Entrei em pânico, achei que estava tendo um derrame e que iria ficar como meu pai que ficou muito mais que inválido por onze anos. Pensei em tudo que nunca mais faria: dançar, entrar no mar, abraçar, conversar...
Fui me acalmando e vi que nada de grave tinha acontecido, mas me senti voltando para a minha existência com muito mais gratidão pela oportunidade de estar no planeta e querendo beber cada gotinha da vida. E se sou essa que encontro no espelho é com ela que irei a todos os bailes.
Também por isso aceitei hoje o convite do meu filho para andar de bicicleta sob uma chuva insistente. Encontramos apenas um homem guiando um carrinho movido pelo vento na praia deserta. Quando ele quis desmontar sua engenhoca e tirar o mastro não conseguiu e nos chamou para ajudar.
Ficamos tentando e nada. De repente nossa esperança aumentou. Vinha chegando um homem bem forte todo vestido de mergulhador. Ele se juntou a nós, mas o mastro não se mexia nem um pouquinho e a chuva continuava forte.
Pensarem em ferramentas e me ofereci para ir buscar. Quando voltei todos se virarem sorridentes para mim. Estavam interessados no grifo que não encontrei. Vi os rostos murcharem quando mostrei só um martelo. Dali a pouco chegou uma pessoa toda coberta por um papelão. Era um curioso se protegendo da chuva.
Começaram a bater o martelo, a puxar daqui e dali. Um tentava, depois o outro. O mastro acabou se cansando de ser difícil e resolveu resolver. O velejador da areia decidiu mostrar sua gratidão perguntando o nome de cada um e apertando nossas mãos. O mergulhador com todo o seu aparato, meu filho e eu mergulhamos no mar. O curioso voltou sequinho sob seu papelão para casa.
Nunca teria conhecido essas pessoas se tivesse ficado em casa reclamando do banquete da vida. Gosto desses momentos em que estou envolvida em alguma história que não é minha. Foi um belo baile cheio de cavalheiros ensopados.
Na verdade, nem imagino o que seja um grifo e talvez eu fique gripada, mas gripe não causa derrame. Que eu saiba!