19/05/2014
Centro de SP, um dia, no carro, pedi uma informação. O homem se aproximou e começou a explicar. Quando eu estava quase indo embora, ele disse: “Você pode ligar para minha mãe e dizer que eu estou bem?”. A reação que tive foi estender o celular e dizer: “Liga!”. Nesse instante, percebi que estava atrapalhando o trânsito, por isso falei: “entra aqui”.
Ele entrou e contou sua vida, mostrou suas tatuagens. Numa delas estava escrito “mãe”. Falou da prisão, da Aids. Ouvi tudo, fiz perguntas, dei para ele um livro sobre budismo que estava no carro, o número do meu telefone que ele quis, e disse que tinha que ir embora. Ele pediu um abraço e saiu e só então reparei que estava na Cracolândia.
Ele me ligou algumas vezes a cobrar. Contou que tinham lhe roubado o livro no albergue. Na última vez que nos falamos, disse que tinha feito uma besteira ao tentar assaltar uma loja, estava machucado, sangrando e que policiais, naquele momento, estavam olhando para ele, falou que perto dele tinha uma pomba numa poça d água. Estava triste e nunca mais telefonou.
Quando estudava na Faap há cerca de 30 e poucos anos, minhas aulas ficavam num lugar muito alto. Para ir até lá subia por muitas escadas. Não lembro quem começou, mas o que sei é que aconteceu um grande diálogo com alguém desconhecido, através de escritos que fazíamos nas paredes dessa escadaria. Foram meses nessa toada. Eu escrevendo, ele respondendo. Não me lembro do assunto. Quis conhecê-lo e por isso marquei um encontro lá em cima, na sala de aula. Ele não apareceu. Por que será? Depois disso não nos escrevemos mais. É ruim quando algo não fecha. Por que ele não quis me conhecer?
Outro dia recebi uma mensagem no celular: “Oi linda!”. Respondi: “acho que você se enganou”. Ele pediu desculpas. Horas mais tarde, novo torpedo: “Você poderia conversar comigo?” Respondi que sim, de lá para cá já chegaram e foram muitas mensagens. Depois de uma em que ele disse que tinha sentido minha falta, escrevi: “Informação básica: sou um tanto velhinha, casada e não tenho o menor interesse em paquera”. Ele disse que achava ótimo ter uma amizade platônica.
Não sei seu nome, nem idade. Sei que outro dia estava numa rodoviária com dinheiro insuficiente para pegar um ônibus para SP, e tinha um cartão de crédito que o guichê não aceitava. Ele acatou a sugestão de alguém, comprou uma passagem mais barata e foi para uma cidade onde disseram que aceitam cartão. No ônibus escreveu contando que ama fazer pequenas esculturas em madeira, que fica uma semana admirando depois que termina alguma. Ele escreve com erros muito graves de ortografia, no entanto tem um vocabulário surpreendente. Talvez seja um segurança, porque falou de um emprego que teve como controlador de acesso. Pelo jeito é religioso, porque sempre fala no PAI.
De vez em quando suspeito que seja algum amigo brincando comigo. Uma coisa é certa: não pretendo conhecê-lo. Agora começo a entender por que meu parceiro de escritos na escadaria não quis me conhecer pessoalmente. Já não sou tanta curiosidade como era quando jovem, tudo parece já conhecido também.
Essa troca de mensagens, na verdade, mais que tudo tem me despertado a vontade de ir além, de conversar com alguém que seja inteiramente novo. Ele não é, nenhum humano é. Por isso, tenho dito que quero me comunicar com algum extraterrestre. Novos códigos, novo corpo, novas histórias. Quem sabe?
Foto Ligia Vargas