03/08/2020
Memórias ao pé do fogão - Um conto sobre sentimentos guardados no coração
Vamos colocar um punhado de ervas cheirosas na água quente, fazer um chá
e remendar os rasgos das nossas lembranças. Relembrar as ruas, as festas, as
vivências daqueles nossos vestidos floridos, coloridos e perfumados. Agora
vamos fazer fuxico com todas as memórias impregnadas em cada fibra.
Aquelas roupas não nos servem mais, também não precisamos mais delas,
nossas vestes hoje nos deixam em conforto com nossas curvas menos acentuadas. Vamos
“prozear” costurando, alinhavando as
lembranças de crianças... não podíamos misturar melancia com leite, nem manga,
jamais, até o dia em que experimentamos com muita coragem e descobrimos que não
se morre por conta disso.
Hoje nós, sessentonas, sabemos que a mamãe não nos deixou por causa do
chinelo virado, que a visita não foi embora pela vassoura atrás da porta e que
passar embaixo da escada não impediu nosso casamento.
As horas passam, estou esperando que chegue uma amiga para o chá, mas ninguém
aparece. Os espaços de convivência se fecharam, ficamos mais quentinhas e
quietinhas em nossas casas com um medo danado do tal corona, antigamente apenas
uma inofensiva marca de ducha, hoje sinônimo de medo, muito medo, sobretudo para
nós, idosas e idosos.
Oh vírus danado saia daqui! Ainda sentimos necessidade de contar nossas
histórias, falar do que vivemos e das “estórias” que inventamos. Precisamos,
com nossas cabeças nevadas ou coloradas, reunir crianças para ouvir episódios longínquos
a esses tempos, passados em outrora e que nossos entes já não aguentam mais
ouvir de tão demasiadas vezes narrados por nós.
A cadeira de balanço, o canto de ninar, as costuras e receitas nos
identificam, mas não nos resumem. Podemos desbravar a internet, devorar livros,
dirigir, dançar, cuidar, além de sermos cuidados e contribuir.
E por falar em receitas preciso te
dizer filha, já que você gosta tanto do meu arroz, venha ver como eu faço,
embora mãos de mães sejam mágicas e insubstituíveis, fique perto de mim à beira
do fogo, chegue mais perto, converse pacientemente, mesmo que eu repita narrativas.
Outro dia o padre Fabio de Mello disse que você pode me esquecer sentada
ao Sol, que a nossa suposta inutilidade pode acarretar descaso e falta de
compaixão.
Não, não podemos permitir que seja preciso que as assistentes sociais
tenham de procurar por nossos familiares, que muitas vezes esquecem de nos buscar
na alta hospitalar, não podemos admitir que o nosso neto peça financiamento
bancário em nosso nome, dívida esta que jamais honrará. Não podemos aceitar que a nossa filha deixe
todos seus filhos em tempo integral pra que cuidemos deles, além de pedir para deixarmos
a comida pronta e a casa limpa, esquecendo-se que temos nossos corpos cansados,
que queríamos a chance de escolher os dias para matar a saudade dos nossos
netos, queremos que eles possam sentir saudades da gente!
Eu gosto de preparar uma mesa
farta, mas não quero que meus filhos usufruam de minhas mãos calejadas
economizando os gastos com cuidadora ou doméstica, retribuindo minha rotina
para suprir a necessidade deles com mimos no Natal.
Não é um pesar ficarmos com nossos netos, emprestar minha aposentadoria
aos meus filhos, ceder meu nome legítimo e limpo aos meus familiares, é
prazeroso, honroso, gratificante, mas não façam parecer obrigação porque
corremos o risco de ceder com um medo que é maior do que o do vírus, o medo de
nos tornamos inúteis aos seus olhos.
Nesse momento vou colocar mais água no fogo, aquela já secou, enquanto eu
vagava em pensamentos a espera de você chegar, será que você virá?
Disque 100
Negligência, violência psicológica e abuso financeiro e econômico estão
entre os tipos de violência mais praticados contra as pessoas idosas, de acordo
com dados do Disque 100 de 2019. E com a pandemia do novo coronavírus, as
denúncias de violações contra essa parcela da população tem aumentado.
No começo de março tivemos 3 mil denúncias, em abril esse índice passou para 8 mil e, em maio, foi para quase 17 mil.
Foi criado um canal exclusivo do Disque 100 para atender idosos em
situação de isolamento social. Serão prestadas informações sobre os cuidados com
a doença. A equipe de atendimento também faz o acolhimento social para
confortar os idosos e atenuar problemas provocados pelo isolamento prolongado.