19/10/2006
O cursinho, apesar de tudo, não é uma instituição de ensino reconhecida, mas deveria. Deveria inclusive ser obrigatório. É muito mais do que apenas matéria e aulas, são conferências magistralmente arquitetadas. As classes são feitas em forma de auditório, os professores quase sem vínculo pessoal com os alunos são obrigados a prender a atenção geral da turma com o carisma e a arte de falar em público. São palestrantes natos e antes que o tempo passe e eu diga que tive um grande professor, prefiro o agora, prefiro dizer que tenho. O nome dele é Renan, professor de História Geral. Entra na classe em silêncio, normalmente com a cara nublada. Liga seu microfone, senta no banquinho, olha para baixo, suspira duas, três, vezes como se respirasse a história, e começa. É uma enciclopédia humana, afirma fielmente que a história nunca sabe onde a própria história pode levar... Cada aula dele é como se fosse um teatro, um monólogo de retóricas e fatos. Muitas vezes já senti vontade de levantar e aplaudir ao ouvir o sinal. Nunca fiz isso, mas o silêncio da classe após a última palavra confirma o silêncio inicial e é como se coletivamente todos suspirássemos duas ou três vezes recebendo o ar rarefeito da história.
Hoje a peça em cartaz foi a 1º Guerra Mundial. Fantástico. Os motivos, as razões, os passos e planos, tudo se encaixando, tudo levando a história, caminhando lentamente, como se a classe retrocedesse ao ano de 1913, meses antes do estopim que levou ao início de tudo. Falando em tudo, tudo que ele disse mereceria uma crônica, mas foi uma historieta que me motivou a escrever... A primeira guerra foi basicamente uma guerra de trincheiras, aonde soldados se localizavam estrategicamente em buracos e atiravam em outros soldados localizados estrategicamente em buracos. Trocando em miúdos, os soldados atiravam em inimigos que não viam e tão pouco sabiam se estavam acertando. As batalhas campais e corpo-a-corpo foram extintas, a primeira Grande Guerra foi do ponto de vista da ação, um enfado. A Inglaterra pediu para que um grande cineasta da época gravasse o front inglês e produzisse um filme. Um mês depois de conviver diariamente com os combatentes britânicos, o cineasta voltou para Londres afirmando que o filme mataria as pessoas de monotonia dentro do próprio cinema. Enfim, com o tédio imperando, restava aos cadetes esperar o tempo passar e esperar Natais. No Natal de 1915, alguns ingleses devidamente acompanhados de suas doses de rum cantavam canções natalinas. Alemães do outro lado do front, que já haviam morado na Inglaterra, entoaram o cântico. De repente os dois “supostos” inimigos formavam coro de Natal, cada um do seu respectivo lado. Ingleses levantavam cartazes de Feliz Natal, alemães respondiam com mais cartazes. Com o sentimento de amizade pairando no ar uma partida de futebol foi proposta. Alemães afirmam terem vencido por 3 a 2, ingleses confirmam a vitória indiscutível por 3 a 1. Quem ganhou não importa, mas esse afeto todo não agradou os generais, principalmente quando souberam que os soldados atiravam para cima por medo de poderem acertar os amigos. Os mesmos foram trocados e enviados para a casa.
Renan não disse nada, mas as suas sobrancelhas rangidas afirmavam claramente a estupidez do homem. Propunha silenciosamente com quase todas as palavras inúmeras partidas de futebol, pedindo uma rendição da história pela própria história...