12/03/2010
Por Risomar Fasanaro
Era ela esse desviver lento e repetido. Essa memória de asas trancadas dentro do peito, naquele desexistir de sempre. Uma cobra que perde a pele para não mais voltar. A tristeza de ser pássaro e cadeia, asas e sombras, mar e rochedo. A monotonia da vida. Jogo de damas.
Noite após noite, o mesmo ritual: desenroscou um dedo do pé e deixou que dele caíssem três bolinhas. Guardou-as no bolso do roupão para o dia seguinte: as passagens do marido, o sorriso na hora do almoço, as reclamações, o lanche dos netos. Foi dormir.
Às sete levantou. Antes de colocar as meias, pois sentia muito frio nos pés, desenroscou o pé direito, virou-o e aparou cinco bolinhas que escorreram do tornozelo. Com elas poderia comprar pão e leite. Antes bastava uma, agora, com o aumento dos preços, já não sabia onde iria parar.
Ainda faltava explorar o ventre. Foi o que fez na semana seguinte. Desenroscou o umbigo e dele retirou o que precisava.
A nora andava doente, precisava ajudá-la a cuidar das crianças. Fizera aquilo a vida inteira sem que ninguém percebesse; nem ela mesma, talvez. As rugas do rosto e das mãos menores que as da alma.
Agora quase nada havia. Era uma casca quase sem recheio, um ovo esquecido em um ninho durante anos. Nem mesmo o pássaro que sempre guardara, batera suas asas dentro do peito. Talvez morta, ave esquecida que ela não alimentara. Morta na gaiola.
E veio o dia em que desenroscou dedo por dedo das mãos e dos pés e nada mais restara em seu interior. Espremeu os olhos e não conseguiu retirar nada. Toda ela secara. A pele grudara-se aos ossos, esvaíra-se por inteiro em sua transitoriedade de flor.
Uma das netas vendo-a desesperada esfregando os olhos, perguntou-lhe qual era a razão do desespero. E ela, ou porque não quisesse ou porque não soubesse, disse ser um argueiro. A menina quis ajudar e soprou dentro do olho da avó, na tentativa de ajudá-la. Foi quando a avó desfez-se no ar, espalhando pelo ar milhares de pétalas.
(Conto que integra a antologia “O Buquê e o Sonho”, editora Lume, S.P. 1991)
Pernambucana, veio para Osasco com 11 anos. Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil. |