24/03/2010
Por Risomar Fasanaro
Maria Amélia nasceu entre as montanhas azuis das Minas Gerais. Pedra Azul, uma cidadezinha no, Vale do Jequitinhonha, que conheci em 1970, e foi o azul que a acompanhou por toda vida.
Vaidosa, alegre e muito engraçada, Maria Amélia, ou Mãe Azul como a chamavam os oito filhos, os sobrinhos e netos, cozinhava bem demais.
Rosa, a irmã, e Roxinha, a amiga, eram suas companheiras inseparáveis. Às vezes Roxinha e mãe Azul falavam de Nanosa, apelido de Rosa, porque ela mudava de religião como quem muda de roupa e um dia Roxinha comentou: ô Zu, Nanosa só falta virar maçom...
O que elas não contavam era com a presença de Eliseu, neto de Nanosa, ouvindo aquela conversa; e é bom que se saiba, aquele não deixava esquentar novidade, foi correndo contar pra avó que ficou furiosa. Disse tantos impropérios, revelou tantos segredos da amiga e da irmã, que o céu de Pedra Azul naquela tarde mudou de cor.
Mãe Azul correu o risco de perder a visão, por isso fez uma promessa: se Deus preservasse aqueles olhos, nunca mais assistiria carnaval na tevê.
Mas chegou o carnaval, e ela não conseguiu resistir. Ficar sem o desfile das escolas de samba, não dava.
Ligou a tevê baixinho, para os filhos não perceberem que ela quebrara a promessa. Mas um deles ouviu o som do aparelho e a recriminou: “mas mãe, você não fez uma promessa que nunca mais ia ver tevê? “Dizer eu disse, mas não estou vendo, estou só ouvindo. Ou-vin-do!!!”
Ela não admitia cenas de violência nos programas. Quando em algum filme um assassino ia matar a vítima, corria à cozinha, pegava um pano de prato e jogava sobre a tela da televisão: “mata, desgraçado, mata! Quero ver agora se você mata! Aqui na casa de Maria Amélia ninguém mata ninguém!”
Além de ver tevê, o que ela mais gostava era de cozinhar. Enquanto realizava os afazeres domésticos, ouvia pelo rádio, os programas de receitas culinárias. Só havia um problema: Mãe Azul era analfabeta, por isso não podia anotar as receitas.
Mas inteligente como era, logo isso deixou de ser problema: criou um “alfabeto” próprio.
Aproveitava os cartões que vinham nos tabletes de chocolates, e neles desenhava suas receitas: colheres, copos, xícaras, litros de leite, alface, tomates e demais utensílios e ingredientes, e para finalizar ainda reproduzia a decoração que o prato deveria ter ao ir para a mesa.
Quando um dos filhos chegava, ela pedia para ele anotar no verso do cartão o que ela “escrevera”.
Verdadeira preciosidade que você poderá comprovar na foto que ilustra esta crônica, Paulo Freire teria adorado conhecer este alfabeto.
Emoldurei três dessas receitas e coloquei o quadro aqui na minha sala, para tê-las sempre à vista.
É para elas que olho sempre que me encontro desanimada diante de alguma situação que me entristece ou me incomoda. O fato de não saber ler, não tirou sua alegria, não a impediu de fazer o que mais gostava: cozinhar.
É... Às vezes aprendemos com as pessoas que nunca leram um livro, melhores lições do que as que aprendemos com muitos doutores...
![]() | Pernambucana, veio para Osasco com 11 anos. Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil. |