01/04/2010
Por Risomar Fassanaro
Hoje faz 46 anos que se deu o golpe e uma ditadura se instaurou no Brasil durante longos e penosos anos.
Temos em SP um memorial que reúne parte dessa história. Denominado Memorial da Liberdade, foi inaugurado após um restauro das dependências que estão muito próximas do que eram na época em que ali estiveram os presos políticos.
Nunca estive presa ali, mas a angústia me toma sempre que lá entro. Vários dos meus amigos e ex-professores ficaram reclusos naquele presídio, e ainda que não conhecesse a maioria dos que ali ficaram presos, o sentimento de tristeza é o mesmo.
Enquanto percorro aquelas celas e corredores, fico imaginando se fosse possível àquelas paredes, àquele piso contarem o que testemunharam: os gritos de dor durante as torturas, os gemidos, se pudessem nos contar os pensamentos de revolta, de medo e solidão que viveram os que ali ficaram, talvez não suportássemos sequer entrar naquele prédio.
Há laços invisíveis a unir as pessoas. Pessoas que muitas vezes não se conhecem pessoalmente, mas ao ler algo sobre elas, imediatamente um fio saído da alma da gente se tece e as duas almas se encontram, porque é da natureza humana sofrer diante da dor do outro.
Faço parte da Geração 68, e isso basta para que esses fios de que falei, tal qual em “Tecendo a Manhã” do poeta pernambucano João Cabral, se teçam e me unam aos que de uma maneira ou de outra lutaram contra a ditadura. Sou um deles.
Uma geração de rebeldes, de teimosos, de gente que mesmo hoje, com os cabelos brancos, ainda se apaixona por uma causa, ainda se inflama ao discutir os destinos do país e do mundo. “Que faz versos, que ama, protesta”, tanto quanto o José de Drummond. Uma geração que não se deixa dobrar. Não tem vocação para o silêncio diante das injustiças.
E eu estava ali, no dia da 4ª inauguração, em 2009. E embora sejamos tudo isso que escrevi acima, não chorei sozinha. Foram muitos os que vi chorando ao entrar e sair daqueles cubículos onde ficaram ou não presos. Ao ver as fotos dos companheiros executados pela ditadura, ao ler as inscrições que reescreveram nas paredes das celas era impossível manter-se alheio.
Eis uma das inscrições:
“Dependendo da maneira como o carcereiro abria a porta, a gente percebia o que era: se era para chamar alguém para a tortura, se era alguém chegando, se era comida que estava vindo.”
Vi muitos chorando na última cela, onde as pessoas sentavam em bancos laterais, com fones de ouvido escutando os depoimentos de ex-combatentes da ditadura. Na cela escura, apenas uma lâmpada iluminava um vaso com um cravo vermelho dentro (a flor dos revolucionários) no centro do local, e que me pareceu simular um velório.
O Memorial da Resistência é uma homenagem a todos que lutaram contra a ditadura. E somos muitos. E mesmo com a ausência de tantos assassinados que partiram antes da hora marcada, que divergem, discutem, têm posições, partidos diferentes, todos têm um só objetivo: construir um país melhor.
Não conheço a maioria dos que estavam lá, mas me senti em casa, vi o mesmo brilho em cada olhar, em cada rosto a mesma expressão de serenidade, por ver que agora o local inaugurado prematuramente três vezes, agora voltava às características originais. Uma vitória desses rebeldes que não aceitaram o prédio “maquiado”. Reivindicaram e conquistaram a restauração daquele espaço.
E depois de percorrer toda a exposição, de ver o estreito corredor onde podiam ficar menos de uma hora por semana para tomar sol, de ouvir os discursos, de conversar com algumas pessoas, saio me fazendo uma pergunta: quem tem o direito de exigir de nós a lucidez dos que só conheceram a liberdade? Quem neste país pode condenar nossa loucura?
Pernambucana, veio para Osasco com 11 anos. Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil. |